Por um “outro jornalismo” sem procastinação do digital

Acompanhar o congresso virtual INMA 2020 trouxe sensações conflitantes para quem, sob uma perspectiva brasileira, estuda e analisa a gestão de mídias informativa há décadas. Estar up-to-date com o debate global é um privilégio e um bilhete de acesso à inovação, às práticas e tendências. Mas, sempre tem um mas, indica o delay da paisagem midiático-jornalística brasileira.

Evidente que meu olhar é propositadamente detalhista. De meu lugar, acompanho por dever de ofício as idas e vindas dos empreendimentos midiáticos. Um lugar que foca nos pontos sensíveis, inatingíveis ou, pior, ignorados pela grande maioria dos negócios informativos do país. Algo como “ainda não caiu a ficha” no antigo popular.

Críticas à parte, o INMA 2020 destacou duas macro-visões bastante essenciais para qualquer empreendimento informativo, até mesmo para os nossos brasileiros: inevitáveis mudanças corporativas devem ser encaradas como uma contínua maratona e não simplesmente um sprint desencadeado por crises; a transformação digital que já deveria ter ocorrido desde os primórdios da web social, hoje e no futuro, é imperativa — o crescimento dos negócios de informação só ocorrerá por meio da digitalização ampla e do uso inteligente de dados.

A insistência sobre estas visões pode até parecer inoportuna para muitos. Quantos analistas, consultores, punditscelebs da informação já falaram disso? Coisa de acadêmico? “Não é nosso caso….” são palavras recorrentes.

Earl J. Wilkinson, diretor executivo da INMA fez fortes afirmações, apresentando indicadores, para a indústria: as 12 primeiras semanas da crise covid_19 fez mais para as empresas jornalísticas do que os últimos 12 anos; ideias de aceleração e inovação foram desperdiçadas; foi necessária uma pandemia para chacoalhar a miopia cultural; os próximos meses de 2020 serão cruciais para jornais e similares.

Foi em clima de update-or-die que a palestra da consultora e pesquisadora do Reuters Institute, Oxford University, Lucy Kueng encerrou o evento. Ela também foi direto ao ponto: o crescimento da indústria informativa se dará por meio de estratégia digital, uso intensivo de dados e mudança radical da cultura das empresas informativas.

São indicadores árduos até mesmo para aquelas empresas tidas como bem-sucedidas, paradigmas tipo The New York Times ou The Guardian. A professora disse que após o impacto da pandemia não existe mais espaço para o “procastinadores do digital”.

Kueng indica três fatores estratégicos em momento de stress para o clima interno das empresas informativas: a própria crise covid_19, as acelerantes e mutantes tecnologias digitais, e a convivência conflituosa entre as gerações Y e Z dentro das redações. Diz, ainda, que quaisquer das respostas passam por profundas revisões do que sejam lideranças e cultura das empresas jornalísticas.

O desenvolvimento de lideranças é diferente conforme o nível que ela ocupa na organização, mas em quaisquer deles há que (sic) “elevar a inteligência e baixar o ego”. Ou seja, um exercício de clareza comunicativa dos líderes para expressar, de um lado seu quociente de expertise e de outro seu quociente emocional. Por meio da expertise os líderes são responsáveis por conduzir as estratégias em ambientes de incerteza; e por meio do emocional, são responsáveis por suas vulnerabilidades e limites ante a equipe. Quase um embate entre confiança e engajamento para levar adiante as atividades, sem que se tenha a certeza de que o rumo está correto.

Este é o cenário cotidiano de uma empresa informativa contemporânea.

A mudança de cultura do mundo jornalístico é fator de ruptura para que a indústria permaneça garantida em sua legitimidade no tecido social. Mas é tarefa complexa, mesmo para as big ones.

Kueng aponta como chaves para a transformação cultural: aceleração à inovação cortando a procastinação, redução do complexo de inferioridade ante sua capacidade de renovar — “não somos o NYTimes!!!”, ampliar significativamente o conhecimento e o relacionamento com a audiência, e correr atrás do prejuízo, literalmente.

Para a professora e eu, pessoalmente reforço, a competência estratégica é a mais rara das competências num ambiente jornalístico. Antes que a empresa assuma o discurso ultrapassado de transformação digital deve, rapidamente, assumir o discurso e a ação da transformação cultural.

Por Elizabeth Saad

Post originalmente publicado no Medium.

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