“Rede de ódio”: precisamos falar de violência digital (o texto contém spoilers)

Por Daniela Osvald Ramos, pesquisadora do COM+ e professora na ECA/USP. 

Golpes pela internet, phishing, ransonware (sequestro de dados e pedido de resgate), ataques DOoS (ataque de negação de serviço), entre outros, podem ser entendidos como crimes cibernéticos pois são classificados entre os crimes que necessitam do computador para serem perpretados. No caso dos golpes, este é um velho conhecido do código penal brasileiro de 1940: o estelionato, quando se procura prejudicar alguém de forma intencional, criando armadilhas para tanto, que caracterizam as variadas narrativas dos golpes em circulação na internet.

Também existem outros tipos de violência digital que acontecem a partir do formato  das plataformas e de seus recursos de dinâmicas e linguagens para acontecerem: por exemplo, criar um perfil falso no Facebook é crime? Se o perfil foi criado a partir de fotos públicas e não se utiliza de dados e fotos de pessoas vivas e que existam, não pode ser considerado falsidade ideológica. Assim, não pode ser criminalizado. No entanto, o resultado que pode vir a partir da criação de perfis falsos administrados ou não em massa por robôs pode resultar em violência, digital e física. É o que acontece na história do filme polonês “Rede de ódio”, em cartaz na Netflix.

No filme, o personagem Tomaz é um estudante de Direito que já no início do filme é expulso da Universidade por não pactuar com a prática canônica de não plagiar textos. Copiar e colar da internet para um trabalho escolar se tornou tão comum no final do século XX e início do XXI que existem softwares de controle para isso, para facilitar a busca do professor que desconfia da lisura do estudante. Tomaz, no entanto, se sente injustiçado pela punição, demasiado grandiosa para seu pequeno deslize. Não é nosso foco aqui, mas vale perguntar: Será que a novíssima geração realmente entende a importância de zelar pela produção intelectual de outrem e pela credibilidade da sua? Não falo aqui de usos criativos de conteúdos circulantes, mas de uso indevido mesmo, e intencional.

O filme avança na trama e em um determinado momento Tomaz está trabalhando em uma agência de Public Relations não muito ética e segue o conselho de seu colega de trabalho:  “Nós podemos fazer tudo”. Não há limites para a criação de cenários, perfis, eventos falsos; tudo pode. Ética é uma palavra antiquada nesse modo de agir na internet; sem ética nenhuma, tudo podendo e tudo valendo, há um terreno livre para o crescimento das violências de todo tipo. Lembrando que a internet existe devido a inúmeras operações matemáticas que sustentam tanto o funcionamento do hardware das máquinas quanto dos softwares, e que estamos falando de um ambiente mediado pelo número. O que pode o número? O uso do número para a programação e projeção de cenários está isento de ética e de consequencias? Atualmente, parece que estes questionamentos não importam tanto para quem pensa e age como se não houvesse limites na internet…e… será que há?

É assim que didaticamente o filme mostra o modus operandi da manipulação política sem escrúpulos do “pode tudo” dos discursos de ódio (geralmente confundido com “liberdade de expressão”). De um protesto criado de maneira falsa, com engajamento falso até certo ponto, e, a partir de outro, com engajamento orgânico – na lógica da plataforma, a partir de um certo número de curtidas e confirmação de participação no evento, ele passa a alcançar os perfis que correspondem às pessoas verdadeiras – sem nenhum mecanismo de verificação sobre a veracidade da criação destes eventos – cria-se dois protestos de lados políticos opostos no mesmo dia e horário com a intenção de criar conflito e gerar violência física. Mas o ato em si de deliberadamente criar uma comunicação falsa é uma violência à comunicação; ou, isso não poderia ser chamado de comunicação, que significa entrar em acordo, em entendimento. A própria origem do fenômeno em si é violento – e em nenhuma hipótese configura “liberdade de expressão”.

No filme também desvela-se o cenário potencialmente violento e perigoso do mundo dos games, do extremismo organizado e das fragilidades de pessoas, geralmente homens, expostas a estas experiências como as únicas chances de pertencimento a uma comunidade. O roteiro é muito afinado com a contemporaneidade do uso violento da comunicação digital, uma utopia de liberdade e sinônimo de vozes plurais  até meados de 2010.

O final do filme é simbólico: a juventude preparada pela elite cultural e econômica para representar suas ideias de liberdade, pluralidade (no coquetel da cena final serve-se comida sem glúten e vegetariana), seus princípios e ideologias democráticas é assassinada, e não se trata mais de violência digital. Por isso, violência digital não é “virtual”, ela é real,  e não pode ser minimizada, pois suas consequencias vitimizam pessoas de carne e osso.

Para uma reflexão sobre que tipo de comunicação queremos fazer na internet, plataformização e midiatização profunda, leia:  Sobre cancelamento, oportunismo e o caso Romero Britto: de qual Comunicação estamos falando?

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