Uma declaração contra o discurso simplificador

Por Issaaf Karhawi, doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP

O título desta resenha seria um adequado apelido para o livro “Caminhos da Comunicação: tendências e reflexões sobre o digital”, coletânea de artigos dos pesquisadores do COM+, organizado pela professora Beth Saad. A obra está dividida em três partes: 1. A pesquisa na sociedade digitalizada, 2. A comunicação nas organizações na era dos dados e 3. O cenário de um jornalismo em transformação.

A primeira parte do livro é obrigatória para os pesquisadores e profissionais da comunicação digital. Trata-se de uma apurada apresentação das complexidades da comunicação atravessada pelas plataformas digitais e uma recusa do discurso simplificador e, tantas vezes, limitante que algumas disciplinas impõem à pesquisa no digital. Logo no primeiro capítulo, Experiências e desafios para a pesquisa nas ambiências digitais, Saad afirma que as mutações trazidas pelo digital exigem proximidade “[…] entre o pensar-pesquisar, e o fazer-aplicar. Com isso, há que se adaptar, que assumir posturas resilientes, que aceitem bases epistemológicas multidisciplinares, que tenham flexibilidade para experimentações, tentativas e erros” (p. 23). E essa postura fica evidente ao longo das demais discussões empreendidas pelos pesquisadores do grupo nos capítulos que se seguem.

Há outro importante postulado, no primeiro capítulo, que se refere à impossibilidade de se pensar comunicação versus comunicação digital. Em outras palavras, há comunicação que não passe por algum recurso informático-computacional? E se o digital é basilar, sustentáculo para a comunicação contemporânea, ele é também onipresente em pesquisas de diversos subcampos da área. Essa impossibilidade de dissociação exige novas formas de olhar para objetos e problemáticas de pesquisa.

Sob essa lógica, Cinara Moura apresenta a complexidade e a transversalidade como propostas para se pensar a comunicação digital, no segundo capítulo do livro. Para a autora, mais do que uma visão de completude, a complexidade é uma forma de escapar dos limites das disciplinas e do viés único. E, nesse sentido, a transversalidade seria uma ferramenta, um caminho para a experimentação, a criação e a transformação – imperativos para a pesquisa em comunicação, para Moura. De forma rigorosa e apresentando diferentes perspectivas para aquilo que  se entende como “fazer científico”, Moura desvela um manifesto tácito contra o pensamento reducionista.

Adiante, no capítulo Sobre hipercomunicação e hiperconexão: “sobrepeso” digital, cansaço e visibilidade contemporânea, João Francisco Raposo faz um percurso sobre a relação dos sujeitos contemporâneos com as plataformas de redes sociais digitais e, consequente, imposição da visibilidade e overdose informacional que vivemos. O capítulo é um encontro com as angústias do século XXI: a aceleração, o cansaço, a exigência por alta performance, a rejeição ao passado, a dispersão e ausência de foco, a intimidade exposta e o infarto de nossas almas. Se dentro de um olhar linear esses sintomas seriam apreendidos pela Psicologia, na lógica da transversalidade, da complexidade e da centralidade do digital; a comunicação passa a ser imprescindível para a compreensão de nosso mundo e de nossos tempos, como Raposo deixa muito evidente em seu capítulo.

Por fim, a Parte  1 da obra se encerra com o capítulo A fragmentação da esfera pública e sua mediação pelo algoritmo: discurso de ódio, violência da positividade e novas literacias, de Daniela Osvald Ramos. Nele, a autora defende que “a fragmentação da esfera pública torna a visibilidade e a possibilidade de debate entre diferentes posicionamentos quase impossível” (p. 71). Esse cenário resulta em violência digital, hipótese principal de Ramos. E mais, o despedaçamento do espaço público é um dos possíveis efeitos de dimensões algorítmicas que operam por meio de controle informático. Controle que gera, entre diversas consequências, a desordem social informacional. Aqui, novamente, é possível perseguir o pensamento complexo. Se superficialmente, ou uni-disciplinarmente, a temática da violência não estaria em pesquisas diretamente ligadas à comunicação, é a indissociabilidade da comunicação contemporânea e do digital que resulta nesse olhar aguçado e inovador das pesquisas apresentadas em Caminhos da Comunicação:  tendências e reflexões sobre o digital.

Assim, a leitura desta obra é um convite provocativo e rigoroso acerca do que há de mais complexo em nossos tempos: a comunicação [digital].

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