Por Issaaf Karhawi – Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e pesquisadora do COM+.
Em 2016, li o livro Pressed for time, algo como “Pressionados pelo tempo”, da socióloga inglesa Judy Wajcman. A obra parte de uma pergunta complexa: por que nós confiamos nas tecnologias para fazer tudo mais rápido e, mesmo assim, as culpamos por nos sentirmos pressionados pelo tempo? Mais especificamente, Wajcman questiona a razão de não termos mais tempo livre, mesmo usando tecnologias que, teoricamente, nos auxiliariam nas nossas atividades.
A obra é um convite para a reflexão. Wajcman é conhecida por sua crítica ao capital e perspectiva feminista de análise. Cheguei a escrever uma resenha sobre Pressed for time, aqui.
Vendo a última atualização do WhatsApp, em que agora é possível acelerar os áudios recebidos pelo aplicativo, lembrei imediatamente dessa leitura.
Não é novidade que o tempo passa a ter valor de commodity no capitalismo. Isso significa que organizamos, fracionados, empacotamos e vendemos nosso tempo em relações de troca com nossos chefes, nossas empresas, nosso trabalho. Cada hora é um valioso (ou mal pago) recurso. A modernidade, inclusive, foi a responsável pela demonização do passado: o bom era o novo, o acelerado, o porvir. Wajcman escreve que “a vida vivida em alta velocidade se tornou analogia para o progresso”, assim, quanto mais em frente, melhor! Nessa lógica, o tempo livre e o ócio criativo são encarados com maus olhos – e seguem rumo à extinção completa.
Mas o que isso tem a ver com o WhatsApp? Bem, o aplicativo responde a uma demanda de aceleração que, inclusive, tem ficado cada vez mais evidente. Há alguns anos o debate já circula pela mídia, por meio de relatos de maratonas de séries aceleradas, e mais recentemente por confissões de alunos que assistem às aulas gravadas de seus professores, durante a pandemia, em velocidade máxima.
Poderíamos discutir os impactos disso na aprendizagem (ainda que exista controvérsias), mas o ponto não é esse. Por que aceleramos uma série que, teoricamente, assistimos para relaxar, descansar, aproveitar um tempo de lazer? E mais ainda: o que fazemos com os minutos que sobram? Investimos em um outro lazer acelerado?
Michelle Prazeres escreveu sobre as tecnologias como ladrões do nosso tempo e uma passagem do artigo pode nos ajudar a pensar: “Vivemos para consumir, gerar dados e trabalhar. O tempo do desfrute, do ócio, do intervalo, da pausa; o tempo que não gera dados, não gera dinheiro e não gera consumo estaria, por isso, em extinção”. Gerar dados é estar no digital. É simplesmente curtir um post, assistir a um vídeo. Não é à toa que as redes sociais se organizam de uma forma em que temos a constante sensação de que precisamos assistir só mais um story, conferir pela última vez aquele feed. A sigla FOMO – fear of missing out [medo de deixar passar algo] – revela os nossos medos contemporâneos. O pensamento recorrente é: “Será que algo importante aconteceu durante esse um minuto que fiquei fora das redes? Preciso ir lá ver!”.
Foi por isso que Mark Deuze nos chamou de “zumbis da mídia”: seres que sucumbem perante seus aparelhos, sedentos por mais informação em uma avalanche informativa impossível de ser consumida integralmente. Mas que parece nos consumir.
O filósofo Lipovetsky defende que os sujeitos contemporâneos precisam lidar com o reinado da urgência. A vida diária é tomada pela sensação de que o tempo se rarefaz. Trata-se de uma compressão espaço-tempo, uma “sensação de simultaneidade e imediatez que desvaloriza sempre mais as formas de espera e de lentidão”. Aquele áudio de desabafo do melhor amigo que chega bem no horário do expediente de trabalho – e, por isso, nos faz querer acelerá-lo para saber do que se trata, mas, ao mesmo tempo, seguir trabalhando – faz parte dessa sensação de acontecimentos simultâneos, líquidos, que atravessam fronteiras físicas. O áudio do trabalho que chega no fim de semana com os filhos, também.
Lipovetsky ainda narra que em nossa sociedade urgentista, há “sempre mais exigências de resultados a curto prazo, fazer mais no menor tempo possível, agir sem demora: a corrida da competição faz priorizar o urgente à custa do importante, a ação imediata à custa da reflexão, o acessório à custa do essencial. Leva também a criar uma atmosfera de dramatização, de estresse permanente, assim como todo um conjunto de distúrbios psicossomáticos”. E depois nos questionamos por que as redes seguem polarizadas, sem qualquer tipo de reflexão apurada sobre os fenômenos que nos rodeiam… ação imediata em detrimento da reflexão! Ou nos questionamos por que vivemos com uma sensação permanente de estafa ou por que as discussões sobre cuidados com a saúde mental têm sido tão recorrentes. No mesmo caminho, Byung-Chul Han é categórico ao afirmar que estamos vivendo um infarto da alma que decorre de um mito do multitarefa que produz em nós uma atenção dispersa e irrefletida.
E voltamos ao WhatsApp e sigo perguntando: por que aceleraríamos a conversa com o outro? O problema não é a conversa. O problema é o transbordamento do trabalho para o espaço familiar. O problema não é a fala lenta do amigo, mas o imperativo da produtividade que parece colocar a relação com o outro como desperdício de tempo. Afinal, esse tempo desperdiçado ouvindo um áudio, será muito bem empregado mais adiante em… Em que mesmo?
E, antes que eu seja mal interpretada, não estou falando daquele áudio que poderia ser uma mensagem de duas linhas. Ou de uma reunião que poderia ter sido um e-mail.
Assim, o que precisamos exigir não é a aceleração extrema das nossas vidas, mas a desacerelaração. Há um movimento forte dando as caras por aí, o movimento slow [devagar]. Nas minhas pesquisas sobre influenciadores digitais, isso aparece no slow blogging [blogagem lenta], por exemplo, que coloca em discussão a imposição frenética de produção de conteúdo pelos algoritmos das redes sociais. Há também outros movimentos devagar mais comuns: slow fashion, slow food. Retomando Michelle Prazeres: “é importante compreender a agenda da desaceleração como uma agenda política, conectada à plataforma do decrescimento e à necessidade de escaparmos do capitalismo de vigilância, redescrevendo a nossa concepção de tecnologia” a partir de “uma agenda tecnológica conectadas com o tempo do vivido e o tempo do Outro”.
Mais do que isso, o slow não é um retrocesso, mas o reconhecimento de que aquele tempo que aceleramos não nos pertence mais. Não pertenceria, de qualquer forma, mas parece que nos fugiu sem qualquer fruição, intenção ou implicação. E, assim, se formos acelerar nossas aulas, séries e áudios no WhatsApp que seja como parte de um processo consciente. E que a alegria com a nova atualização do aplicativo seja por conta da chance de acelerar aquela cobrança chata que chega pra gente de pessoas que lidam com nosso tempo como se ele fosse a mercadoria menos valorizada do mercado. E só.
Referência extra para leitura:
Sobre hipercomunicação e hiperconexão: “sobrepeso” digital, cansaço e visibilidade contemporânea. Capítulo escrito pelo pesquisador João Francisco Raposo e publicado no novo livro do COM+, Caminhos da Comunicação.
Referência extra para ouvir:
No podcast Vitamina COM+, os pesquisadores do grupo se reúnem para discutir detox digital ou, em outras palavras, caminhos e possibilidades para desintoxicar corpo e mente em meio a uma vida altamente conectada.
Foto do texto: Portal Viu